Ponho o pé na rua e saio para caminhar. É uma manhã de sábado, o sol se esconde nas nuvens de inverno, em todas as direções o dia parece dormir. As pessoas, por outro lado, am apressadas, em duas ou quatro rodas. E eu que caminho, um pouco sem rumo, um pouco sem pressa, vou subindo e descendo calçadas, pulando charcos de lama e pisando no chão, um o após o outro. Sigo em uma procura que me leva de rua em rua, de casa em casa, a diversos lugares. 1n1q5u
Muitas dessas ruas são velhas conhecidas de décadas, mas só caminhando por elas é que se conhece na intimidade os seus detalhes, suas delicadezas ou suas indecências. Em uma esquina, dois cachorros rasgam sacolas de lixo, sobre o mato que invade a calçada e o asfalto. Do outro lado, uma mulher dá meia volta para, quem sabe, pegar em casa aquilo de que se esqueceu (mas seu perfume forte continua pela rua adiante). Outra mulher chega na calma da banguela a seu serviço. Desce da bicicleta e conversa com o cãozinho do patrão. Um rottweiler preso na corrente.
A cidade começa a se agitar, o sol aparece, o frio vai indo embora. Mas os contrastes continuam. Do lado da tapera de uma casa antiga, pedreiros reformam um prédio com apartamentos. Mais à frente, os escombros de um casarão estão murados e totalmente vedados, no entanto, as buganvílias que adornaram um dia a bela casa estão lá, florindo. Algumas poucas casinhas geminadas de paredes grossas resistem, em meio à austeridade dos tijolos de oito furos. Delas, velhinhas simpáticas dão bons-dias aos antes ou às suas, ainda vivas, vizinhas. Lá do alto, bem-te-vis, rolinhas e pardais também se cumprimentam.
Na Praça da Bandeira, velhos despreocupados conversam, enquanto seus rendimentos continuam a se multiplicar, exorbitantemente, escandalosamente. E os que am trabalham e trabalham, exorbitantemente, escandalosamente. Na Igreja Matriz, pessoas entram e saem, consagrando seu dia num rito diário, algumas se encontram, conversam e se despedem, outras am em frente e se benzem. As pombas, no telhado, também repetem seus ritos (alguém as nota?). am-se os dias, am-se os anos, vão-se as pessoas e suas histórias, só o templo continua de pé, ressoando uma lembrança de toda essa gente.
No adro da igreja, dou-me conta do espetáculo: estou no coração da cidade, e dele vejo ao mesmo tempo dois de seus mais belos e icônicos prédios, o da Igreja Matriz e o da Estação de Trem. É em direção a este que estou indo agora. Pego a Rua 18 de Setembro e caminho por suas calçadinhas estreitas. Chego à Praça Yayá Moraes e caminho pela antiga Rua do Cabresto, que já se chamou 24 de Janeiro e hoje é a Vicente Amâncio (por que se mudam esses nomes, afinal?). Caminhando por ela, relembro tanta coisa. Aulas de catequese no Frei Jordão e os costumes de outra época, um primeiro beijo secreto naquele banquinho da praça, sábados à tarde e a sua bem-vinda modorra, aulas de violão. Mas as memórias se vão com os meus os.
Chego em frente à casa de Judith Santana e contemplo seu rosto jovem estampado numa placa. A casa está fechada, mas sinto um ar diferente. Ao redor, casas da mesma época, todas geminadas. Estou em outro tempo, outra cidade. Parece haver lugar para o sonho, a poesia, a saudade. Caminho mais um pouco e estou sobre o pontilhão do riacho Cabresto. No mesmo lugar onde um dia, criança, banhei com amigos numa tarde de inverno. Cabresto de tanta memória. Alguém ainda repara nessas águas, as águas verdosas do Cabresto?
No bairro Estação, caminho pelos trilhos e olho para muitas direções. Morros, ruas que se encontram em paralelas ou encruzilhadas. Pés de castanhola, oiti e flamboyant antigos dão sombra aos carros e aos bichos. Terão visto um dia a Maria-Fumaça apitando? Ali perto, o famigerado Espinhaço da Cabra, alcova de amores embriagados e paixões violentas, lar temporário de desconsolados e ganha-pão diário de moças e velhas de triste figura. De tantas chegadas e partidas da locomotiva, quantas crianças terão vindo ao mundo nesses desencontros? Ao bairro que nasceu com a linha de ferro e de toda vida mundana e boêmia que a margeava, só um santo poderia abençoar. O santo negro e festeiro, são Benedito. Curioso, em frente à capela, um barzinho aberto noite e dia.
A Estação está de portas fechadas. Sobre o palco da Praça de Eventos, só pombos se acasalam e infestam telhas e paredes. Na outra praça, o circo chegou e partiu, e a fonte de água secou faz alguns janeiros. Tudo parece murcho, desolado. Sigo sobre os trilhos.
Chego à praça do Estádio Ytacoatiara. Dela, parto para o centro novamente e vou encontrando aos esbarrões pessoas distintas, velhas conhecidas e rostos jamais vistos mas tão familiares. Quantas impressões se sucedem nesses vários relances de vista. Tento imaginar o que pensam, o que procuram, o que sentem, aonde vão tão apressados, quem os espera em casa, se voltarei a vê-los de novo, qual figura fazem de mim.
Não paro, e nesse ritmo, estou em poucos minutos novamente nas ruas que havia cruzado mais cedo. Nesse eio, ando por lugares e tempos tão diferentes, mas não me prendo a nenhum deles. Logo, estou em mais outro tempo e nesse, finalmente, paro um pouco. Estou em uma fazenda, dentro da cidade, na Fonte dos Matos. A paisagem é sim de outra época, mas ainda persiste no presente. O gado pasta, cavalos abanam as crinas, um potrinho brinca saltitando, e aves revoam pelo carnaubal. Um casal, em particular, me encanta. Duas marrecas viuvinhas estão paradas no chão catando as penas. Cena rara, para uma manhã.
Ouço o canto dos garibaldis (Chrysomus ruficapillus) e sinto o cheiro das flores de sabiá, que começam a florar agora que o inverno chegou. O sol está mais alto, o dia está pleno, minha pequena jornada está quase no fim. Sinto um enorme alívio e alegria por ter saído de casa esta manhã. Caminhar, afinal, é como escrever. Um percurso incerto mas generoso de encontros com o mundo, com os seres. A diferença é que, na escrita, nunca sei bem aonde vou chegar. Me perco em muitos rumos, volto, corto e refaço palavras, numa procura do melhor caminho, numa procura da minha voz.
Começo hoje uma nova caminhada. Em 2020, dei meu primeiro o, quando decidi escrever sobre a vida na cidade. Agora, eu não poderia ter outro tema, senão Piripiri. Minha cidade me encanta, de um jeito que é, menos deslumbre de apaixonado, que carinho de um velho amigo. Penso que há, nela, muitas histórias para contar. Todas adormecidas, invisibilizadas ou só mesmo à espera de um olhar atencioso.
Várias são as vidas que habitam a cidade, vários são os rumos pelos quais o nosso olhar pode alcançá-las. Começo outra vez a ear por eles.
Com você que me lê, quem sabe.
Diego Renê
Fonte dos Matos, Piripiri.
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Rumos Vários foi o nome da seção de crônicas assinadas por um Menandro Luna, em 1925, no jornal O Periperi. Menandro Luna, na verdade, era um disfarce de Baurélio Mangabeira. As crônicas escritas por ele relatavam eios sinuosos e meio atrapalhados pela cidade, da maneira irônica e farsesca tão típica de Baurélio. São as primeiras crônicas de que se tem notícia sobre Piripiri. Eu não pensaria em outra forma de homenagear esses textos senão mantendo esse título para esta seção de crônicas que agora me encarrego de continuar. 100 anos depois. Que os caminhos a percorrer, agora, sejam vários e longos…
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Duas intenções pretendem reger essas crônicas. A primeira é que serão publicadas sempre aos domingos, a cada duas semanas. A segunda é que serão ilustradas por uma artista-mirim, Celina Yukie, minha filha. Vejamos se conseguimos cumprir com elas.
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