“HOJE EU ACORDEI com oito anos. Na verdade, fiquei com os olhos fechados por um longo tempo, até ser obrigado a levantar. Tudo porque, mais uma vez, estive em um lugar que sempre torno a revisitar, mas em sonhos: a Escola dos meus primeiros anos.” Escrevi isto em maio de 2021, mas acabei não indo em frente com o texto. Em 11 de agosto do mesmo ano, Dia do Estudante, sonhei novamente com a Escola, mas desde então os sonhos cessaram. 571q2v
Naquela época, eu queria escrever sobre a Escola. Mas, por algum motivo, o texto não veio, e para meu espanto, os sonhos com ela também não mais vieram. Até que, semana ada, entrei novamente na minha Escola.
Como todas as vezes, sinto uma atmosfera de sonho, mas me entrego ao devaneio e vou entrando. Cruzo o portão com uma sensação nostálgica, vou pelo pátio, pelos corredores e chego a ver as salas, as várias portas e janelas, as paredes brancas, aquele piso de pedras coberto de lodo, os pés de castanhola, e penso sentir o cheiro da merenda ou o sino tocando. Sempre estou só, mas ao pisar na minha Escola, me vêm tantas lembranças, tantas histórias, tantos rostos, que chego a imaginar que nunca saí daquele lugar, que continuo habitando aquelas setes salas e aqueles dois pátios.
Já se vão 26 anos desde que deixei de estudar ali. Depois disso, eu nunca mais pus os pés naquela escolinha modesta e perdida no tempo, como parecem agora vistos de tão longe a Escola e aqueles anos 90. Ela continua de pé, ora fechada (guardando quantos segredos?), ora aberta, mas esquecida e solitária. O tempo é outro, tudo mudou, mas quando relembro a minha Escola, ela continua viva e forte dentro de mim. Sinto que tudo que vivi ali ressoa no mais profundo do meu ser.
Se volto no tempo, parece que ainda ouço a minha irmã chorando na sala ao lado. Eu estou no Jardim 2, e ela, no Jardim 1, nos seus primeiros dias de aula, em 1994. Ela chora muito. Enquanto isso, eu brinco com meus amigos de modelagem naquelas mesinhas de compensado. A tia Idalina sorri e brinca conosco, enquanto a tia Lina deve estar consolando a Nandinha.
A minha irmã logo se adaptaria, faria as suas amizades e conheceria também as implicâncias que só crianças sabem ter. De minha parte, sempre me senti à vontade na Escola, com os amigos, com as “tias”, e, principalmente, com as estripulias na hora do recreio.
A única exceção era o Danilo. Se bem me lembro, ele já chegara no meio do ano, e, como era muito pequeno, tinha manias de bebê. O resultado é que por muito tempo eu e outros colegas voltávamos para casa com os braços vermelhos e molhados das mordidas do Danilo. Engraçado é que ele, sendo mais novo e menor do que a gente, era o mais agitado e disposto a brincadeiras que exigiam força. Era ele que puxava com fúria o gira-gira de ferro do pátio menor. A gente ficava tonto, e às vezes saía dos banquinhos pra aterrissar no chão, e logo voltar a brincar.
O pátio menor era o pátio dos brinquedos. Como uma escola humilde, a nossa só tinha dois: o gira-gira e o balanço com dois assentos. A disputa era grande. Quem quisesse ainda se distrair naquele pátio, poderia brincar de pegar os “soldadinhos”, pequenos insetos pretos com listras brancas que faziam morada no pé de carambola. A alegria era dupla: colhia-se o fruto pra comer e o insetinho pra brincar. A intenção nunca era matá-los, só colecioná-los ou simplesmente capturá-los, já que alguns eram mais ariscos. Mas era inevitável que, ao final do recreio, muitos estivessem mortos no chão.
No pátio menor também ficava a cantina. Era ali que se formava a fila gigantesca do lanche. Na euforia pra sair da sala, esperar na fila, pegar o pudim mais gostoso ou o copo de Simba restante, acabava sempre alguém derrubando o lanche ou ficando sem a pipoca. As duas vovozinhas que avam o lanche pareciam ser o oposto uma da outra. Dona Mariazinha, mais calma e sorridente, e dona Raimundinha, rabugenta e apressada.
Para o pátio maior, bastava cruzar o corredor em formato de L. Entre uma correria e outra, havia o perigo de esbarrar com a tia Socorrinha, a diretora, que ficava justamente na sala entre os dois pátios. Durante o recreio, as professoras ficavam naquela sala, que à época parecia tão grande e cheia de coisas estranhas, e onde todas elas eram vistas tomando café em xícaras enormes e transparentes. Lá também ficava a tia Aldinha e a Regina, as secretárias, pessoas com uma certa autoridade e que guardavam os segredos de tantas provas, papéis e de todos aqueles cheiros da secretaria.
Lembro de todas as professoras. Tia Lina, no Jardim 1, tia Idalina no Jardim 2, tia Leila na Alfabetização, tia Márcia na 1ª série, daí pra frente, até a 4ª série, tivemos muitas professoras: tia Ana, tia Adriana, tia Isabel, tia Margarida e tia Edna. À época, talvez, não assem da casa dos vinte anos, mas, para a gente, eram todas mulheres formadas e completas, com as suas singularidades. Os primeiros modelos de mulher que a gente conhecia, diferentes das nossas mães. Ainda hoje, penso nelas como as mulheres que me ensinaram o que é o mundo, que me ensinaram como tudo funciona e o nome que damos a todas as coisas.
Por algum motivo, quando as reencontro, em qualquer lugar, sinto que não envelheceram, que continuam as mesmas que conheci nos anos 90. Tia Leila, que me ensinou a ler e escrever, ainda carrega a elegância e a integridade de uma mulher madura de 30 anos. Tia Ana, Idalina e Márcia, com quem encontro vez ou outra, ainda guardam a simpatia e a delicadeza no rosto, além das mesmas vozes que parecem ora me ensinar, ora ralhar comigo, ora me acalentar num sonho de infância. Tia Edna era a única que falava uma outra língua, uma língua que demorei anos para entender, mas que ela sabia tão bem: o inglês. Hoje, mora nos EUA.
É uma pena a gente aprender tanta coisa numa escola, mas esquecer de quem verdadeiramente aprendemos tudo. Sistema Solar, as 4 operações, as partes e funções do corpo humano, o “descobrimento” do Brasil e aquelas tantas datas, as classes de palavras, divisão silábica, ler e escrever, os nomes e o gosto pelas coisas, o gosto até de estudar e aprender. Tudo isso a gente aprende na escola com professoras. Sempre elas, no feminino. E por alguma (triste) razão, a gente esquece quem nos ensinou. Eu não seria nada sem todas essas minhas primeiras professoras, que tão carinhosamente chamávamos de tias.
A minha turma chegou na Escola em 1993, todos na casa dos 4 anos, e ficamos ali até 1999. Em 99, a Escola, que até então atendia ao público do Jardim 1 até a 8ª série, fechou as portas para as turmas da 5ª à 8ª série. Por isso, naquele ano, todos nós nos vimos sem a nossa Escola e sem a companhia de muitos dos nossos amigos. Mesmo assim, penso que o tempo que amos ali foi um tempo mágico. Mágico como o número 7. Afinal, foram 7 anos que lá vivemos, cada um, em uma das 7 salas da nossa Escola. E saindo dela, saíamos também da infância. Com os anos 2000, todos estaríamos condenados à adolescência.
De tantos amigos e amigas, todos ainda estão comigo de alguma forma. Ana Camila, Ana Carolina, Ana Karine, Danilo, Diego, Gilberto Júnior, Isaac, Jordão, Joviniana, Larissa, Marina, Renata, Renê, Sílvio, Vanessa, e Wellington. Nem todos estiveram na Escola pelos 7 anos seguidos. Mas cada um destes formaram, com a Escola, os anos mais incríveis da nossa infância.
Voltando no tempo, acredito que é na escola que todos constituem a sua primeira impressão do que é o mundo e de como conviver com os outros. Muito mais do que no núcleo – às vezes tão reduzido – da família, é na escola que conhecemos e aprendemos a viver no mundo. No nosso caso, um mundo chamado Brasil, dentro do qual um outro existia, a cidade de Piripiri; com todas as alegrias e os problemas que esse microcosmo podia guardar.
O Hino Nacional e todos os outros hinos não teriam a importância e a simpatia que têm no nosso coração se não fosse pela escola. O respeito, às vezes com um misto de seriedade e temor, que nutrimos pelos ritos e pessoas de uma escola, é outro aprendizado. A maneira quase automática de se comportar por 4 horas seguidas numa sala de aula, com todas as suas regras e etiquetas, é um feito e tanto. A amizade que duas ou mais crianças formam nos primeiros anos de escola é uma aprendizagem para a vida.
As tantas conversas, descobertas, fofocas, pequenas e grandes invejas, comparações, intrigas, brincadeiras, canções, piadinhas, disputas, corridas e quedas, zangas e risos, brigas e tabefes, abraços e beijinhos, tanta coisa acontece na mente e no corpo de uma criança de 8 anos. Coisas que calam fundo na sua alma, pro resto da vida. As primeiras paqueras, os primeiros amores (platônicos por excelência). O cheiro daquela ou daquele menino, não amado nem desejado – porque isso ainda é um mistério –, mas um cheiro que provoca sensações inéditas no coração de uma criança.
De todos os lugares da minha Escola, guardo a lembrança de um refúgio. Um lugar quase inível, secreto e meio proibido, onde havia uma minúscula mesinha de concreto. Sempre que podíamos, eu e meus melhores amigos, Silvim, Jordão e Wellington, corríamos até ela, para lanchar e conversar durante o recreio. Aquela mesinha foi o primeiro esconderijo da minha infância, o nosso primeiro baú do tesouro a céu aberto, no qual dividimos o nosso bem mais valioso, sem saber o nome daquilo. Amizade.
De repente, naquele vozerio de crianças correndo e gritando, o sino tocava. O sino mágico que podia indicar tanta coisa boa ou ruim. O início ou o fim do recreio. Toque para entrar nas salas ou a hora de ir para casa. O sininho mágico da tia Socorrinha, que se punha na janela da diretoria e badalava o pequeno objeto dourado, que soava alto e longe em todas as salas. Ele marcava o fim ou o começo da nossa euforia.
26 anos se aram, desde a última vez que ouvi aquele sino na minha Escola. Mas ela ainda está lá. Os mesmos muros, as mesmas paredes, as mesmas portas, as mesmas janelas, as mesmas salas. Não obstante, eu reluto em pôr os pés naquele pátio. Por isso escrevo, porque também os sonhos não bastam.
Hoje, 26 de abril de 2025, por um feliz acaso, eu ei em frente à minha Escola. Lá estava ela, com o pé de castanhola, vetusto e frondoso, com o portão aberto, e com as portas e janelas ainda pintadas daquele azul vivo. Revi num relance a minha infância.
E mais. Eu vi a tão temida tia Socorrinha, a diretora, em frente à minha Escola! Ela, assim como a Escola, que dirigiu por tanto tempo, estava lá. Num prosaísmo que só a velhice pode revelar, a diretora durona, encurvada e vestida numa roupinha caseira, varria a calçada de sua casa, em mais uma manhã de sábado. Enxerguei a infância e a velhice nesta manhã, no dia em que envelheço mais um ano de vida.
A infância é mesmo esse tesouro sempiterno de lembranças, amores e aprendizagens guardado no mais recôndito da memória. Um tesouro que pode morar num lugar, como a minha Escola, ou em outras pessoas, como todos os meus amigos de escola.
Há um ano, li uma agem da Rachel de Queiroz que me pegou como um soco no estômago: Enquanto você tem irmão, tem você uma reserva de intacta meninice. Nenhuma frase jamais me comoveu como essa. Depois dela, eu me vi órfão daquilo que de único poderia preservar a minha meninice. Porque eu não posso rever a minha irmã, eu não posso revê-la e, por isso, rever diante dos meus olhos a minha meninice.
Mas hoje, para minha surpresa, descubro que, depois de tanto tempo, eu ainda guardo a Escola nos meus sonhos. Eu ainda sonho com a Escola, essa entidade máxima da minha alma de menino. E por causa dela, e de todos os amigos que eu fiz ali, eu ainda habito um lugar onde posso ser só uma criança com outras tantas.
A Escola.
Diego Renê
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A seção Rumos Vários é sempre publicada aos domingos, a cada duas semanas. A ilustração é da minha filha, Celina Yukie.
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