Dois irmãos estudam para as provas, mais uma vez. Eles formam uma família, como todas as outras. Dois filhos e duas filhas. Eles estão no início dos seus 20 anos, chamam-se Matteo e Nicola, mas poderiam se chamar José e Francisco. Eles nasceram nos anos 40, mas poderiam ter nascido ontem, porque a juventude é eterna, e o que os dois viveram forma uma mesma sinfonia, tantas vezes repetida no enredo particular de cada família. A história dessa família, como a de muitas outras, atravessa um século inteiro. E os seus melhores anos perduram, porque neles a vida se inscreveu, inexoravelmente. 32172t
É uma família como qualquer outra, nem tão numerosa, mas do tamanho suficiente para formar uma grande família. Dentro dela, os filhos estão sempre acompanhados de irmãos, de amigos dos irmãos ou de parentes. Pelos corredores da casa ou pelas paredes dos quartos, há sempre algum barulho de pés ando, de risos e conversas ou de música alta. No corre-corre diário, marido e mulher mal conseguem disfarçar os rancores e brigas dos filhos mais velhos. A filha pequenina que não entende dessas coisas só vê harmonia dentro de casa. E entre uma chegada e partida, no ramerrão dos dias, todos vão crescendo e tomando os seus caminhos.
A filha menor, que ama tanto os irmãos a ponto de querer casar com eles, permanece na companhia dos pais até a maturidade. A mais velha parte cedo para a cidade grande, e lá faz sua vida. Os dois irmãos, Matteo e Nicola, estes, definitivamente, estão atados um ao outro. Como muitos irmãos próximos na idade, eles têm um misto de rivalidade e iração mútua. São opostos que se completam. Enquanto Matteo é impulsivo e extrovertido, Nicola é contido e pragmático. No entanto, ambos se arriscam um pelo outro, ambos abandonam a própria segurança para seguir o irmão em qualquer aventura.
Eles têm vinte anos. Quem não nasce para ter vinte anos? Quem não nasce para se arriscar e abandonar todas as certezas e todo conforto em busca de um amor ou de uma causa que pareça justa? Quem não daria a vida por um irmão? Numa dessas aventuras, a vida dos dois dá uma guinada definitiva. E nada será como antes. Um toma o caminho das armas e da obediência, porque desistiu de encarar o caos que é o mundo. O outro toma o caminho da experiência e da aventura, porque ele vive em função do encontro e da relação com os outros. As suas histórias não serão mais as mesmas, os seus caminhos raramente se cruzarão novamente.
Quanto tempo leva para se alcançar a maturidade? Quantos amores são necessários para se formar um homem de verdade? Quanto desassossego e quantos casos e descasos da paixão? Quanta coragem e quanta covardia enformam, juntas, o destino de um homem? Quantas vezes ele precisa voltar para casa, como se retornasse às suas origens, pássaro perdido num ninho vazio? Haverá algo a se encontrar novamente na casa da infância? Quantos fantasmas habitam aquelas paredes e aquela mobília? Mas a vida é de um furor que não cessa, e é preciso continuar a caminhada.
Nicola percorre o caminho do trabalho e da amizade. Matteo se perde, assombrado por um incidente do ado e sem conseguir se envolver com as pessoas. Nicola ama uma mulher e luta junto a ela pelos seus sonhos. Matteo se isola da família e de todos, e se refugia num pequeno apartamento cercado de livros. Nicola luta, chora e ri para a vida junto à família. Matteo se prende a um trabalho de cão, que o afasta do contato com os outros. Nicola e Matteo choram juntos a morte do pai. E choram juntos também os descaminhos de suas próprias vidas. Tão unidas, e tão distantes.
Viver a felicidade só é possível com os outros, por causa dos outros. Nicola sabe disso. Sacrifica-se pela mulher, que tem um sonho temerário e por causa do sonho arrisca a própria vida. Não chega a perdê-la, mas perde a si mesma, abandonando o lar, o marido e uma filha pequena.
Matteo se envolve uma vez com uma mulher, com uma bela mulher. Artista, sonhadora, culta, tem com ele altas conversas, mas Matteo nem mesmo a essa bela mulher é capaz de ser sincero, é capaz de se abrir. Gosta de livros por poder fechá-los quando quiser, diz ela ao homem que já pensa amar. Ele, inamovível, escuta uma verdade que o assombra: A vida é diferente, não é você que decide tudo. Mas para ele, já é tarde demais.
Matteo e Nicola são dois irmãos, como muitos em tantas famílias. Como em tantas famílias, suas vidas são cheias de procura, renúncia, angústia, dor, alegria, prazer, luto, remorso, ressentimento, e questões em aberto. A diferença é que, para Nicola, há só um tempo a acertar as contas: o presente. Seu irmão, ao contrário, nunca deixou os fantasmas do ado, que continuam a paralisá-lo.
Nessa família, como em tantas outras, muitas cenas se sucedem. O casamento de uma das irmãs. O divórcio e a solidão da outra. Os nascimentos sucessivos e a criação de todos os netos. As visitas e conversas nas casas de cada irmão. O dia a dia do trabalho e do amor de cada irmão. As reuniões em família, a rememoração de tantas histórias compartilhadas e as comemorações por mais um ano. Tudo o que faz de uma família um lugar de aconchego e, algumas vezes, de uma farpa solta.
Se as comparações são odiosas, talvez nenhuma seja mais odiosa do que as comparações entre família. Quem teve a melhor profissão, quem teve o maior sucesso, quem construiu a melhor família, quem educou melhor os filhos, quem não se separou, quem parece ser mais feliz. É difícil permanecer numa família quando a felicidade dos outros é tão inável. Noite de Natal, risos, brinquedos, histórias, brindes e banquete. Um olhar triste, um olhar apavorado, um olhar fugitivo.
Solidão. Quanta solidão pode morar numa família. O dia a dia, as conversas vazias, os ódios guardados, engolidos e mal digeridos. Fugir, às vezes, nem é solução. Mortificar-se, também não. Depois que mais uma vida vai embora, o pranto, a dor, o desespero, o inconformismo, o abalo aterrador. E, surpresa, vive-se, apesar do luto.
Culpa. Quanta culpa mora guardada no peito de cada membro de uma família. Naquele dia, naquela noite, naquele lugar. Tudo seria diferente, se não tivesse feito isso. Tudo seria diferente se tivesse feito aquilo. Eu devia ter aproveitado melhor meu tempo com ele. Eu devia ter feito alguma coisa. Eu devia ser diferente. Nada disso teria acontecido.
Amor. Será o amor leve como a alegria, ou será denso como o pesar? Pode haver amor que liberta e faz viver, assim como pode haver amor que aprisiona, para proteger? O amor é sempre um bom conselheiro, ou também comete os seus deslizes? Mas qual amor, afinal de contas, habita uma família?
Depois que uma vida vai embora numa família, deixa atrás de si uma marca profunda. É a mesma família, mas não é mais a mesma. Uma mãe que perde um filho. Ainda é uma mãe para quem fica. Mas, para quem fica, aquela mãe nunca mais será a mesma mãe. O irmão que perde um irmão, ainda tem o irmão que perdeu? Ainda tem um irmão? Ou a sua vida vaga errante pelos caminhos cruzados e sonhados do irmão morto?
Como se refaz a vida numa família que se desfaz sucessivamente, morte após morte, perda após perda? Desencontro após desencontro. Ainda há bons e felizes dias para viver, numa família destroçada? Mas qual família não é, desde sempre, destroçada uma vez ou outra?
Os filhos crescem, os netos crescem, os adultos envelhecem. Mas o amor nunca morre. E mesmo nos velhos, ele sabe renascer. A velha mãe encontra num neto as alegrias perdidas de seu filho morto. O filho que restou abandona finalmente o fantasma do irmão. E ao sobrinho, filho do irmão falecido, diz num ato de honestidade e amor: Seu pai era corajoso e triste como Aquiles, porque sabia que os deuses o levariam. Os melhores, os que amam mais, primeiro mandam-nos à Terra e depois chamam-nos a eles. Mas permitindo primeiro que deixem uma marca, para não os esquecermos. Você é essa marca.
A história de uma família se constrói com muitos acidentes. Alguns são ordinários e cômicos de tão previsíveis e repetitivos. Outros são trágicos e incontornáveis. Mas, como diz a conhecida frase de Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Afinal, os melhores anos de uma família só são mesmo apreciados para aqueles que se mantiveram unidos de alguma forma. Que construíram um patrimônio de memória em comum a cada membro. Que fizeram com que a vida valesse a pena ser vivida assim mesmo, em família.
Matteo e Nicola são só personagens de ficção, um sonho bonito de uma família que se construiu por várias décadas e muitas e sucessivas gerações. A quem sorrirei, se não a ti? A quem, se tu, tu não estás mais aqui?, diz uma canção bonita dentro da história dessa família. A quem eu falarei, se não a ti? A quem contarei todos os meus sonhos? Sabes, me tens feito mal deixando-me só assim. Mas não importa, eu te esperarei!, conclui a canção.
Talvez, na história de toda família, sempre reste uma falta, uma grande saudade, a ser preenchida só mesmo um dia no descanso final. No entanto, só em uma verdadeira família é que é possível viver uma vida pela qual valha a pena morrer.
Porque a vida e a morte, numa verdadeira família, são ambas parte indissociável dos seus melhores anos.
Diego Renê
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A seção Rumos Vários é sempre publicada aos domingos, a cada duas semanas. A ilustração é da minha filha, Celina Yukie. A artista, dessa vez, se utilizou das aulas de Arte Moderna, como pode-se perceber na ilustração…
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