Morreu na madrugada desta quarta-feira, 4 de junho de 2025, aos 92 anos, a arqueóloga Niède Guidon, uma das maiores cientistas da história do Brasil. A notícia foi confirmada por representantes da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), instituição que ela ajudou a fundar e que se tornou seu grande legado. Ela faleceu em casa, na cidade de São Raimundo Nonato, no sul do Piauí — cenário de sua maior descoberta e de sua mais longa batalha. m5w4m
Guidon foi mais do que uma arqueóloga: foi uma desbravadora. Desafiou convenções acadêmicas, enfrentou governos, resistiu ao esquecimento e revelou ao mundo uma nova história sobre a presença humana nas Américas. Graças a ela, o Parque Nacional da Serra da Capivara — patrimônio da humanidade pela Unesco — ganhou reconhecimento internacional como um dos sítios arqueológicos mais importantes do planeta.
Ali, entre paredões de arenito e a vegetação seca da caatinga, Guidon identificou pinturas rupestres e vestígios humanos que remontam a até 60 mil anos atrás. Essa descoberta colocou o Brasil no centro de uma das mais controversas e fascinantes discussões científicas do século: afinal, teria o homem chegado à América muito antes do que se pensava?
A hipótese defendida por Niède contradizia a teoria "Clovis First", que afirmava que os primeiros humanos cruzaram da Ásia para a América há cerca de 13 mil anos. Durante décadas, ela foi vista com desconfiança — principalmente fora do Brasil. Mas sua insistência em pesquisar, preservar e divulgar as evidências que encontrou acabou virando o jogo. Hoje, sua teoria já é considerada plausível por muitos centros de pesquisa no mundo.
Uma vida feita de luta
Niède nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 1933. Formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) e, mais tarde, concluiu seu doutorado na Sorbonne, em Paris. Poderia ter seguido carreira acadêmica na Europa. Mas escolheu o Brasil. Escolheu o sertão.
Chegou ao Piauí nos anos 1970, e nunca mais saiu. Era comum vê-la, ainda na década de 2010, subindo trilhas sob o sol escaldante do semiárido, acompanhada por guias locais e jovens pesquisadores. Com seu chapéu inseparável, sua fala firme e olhar penetrante, tornou-se uma lenda viva — tanto para a comunidade científica quanto para os moradores da região.
Além da ciência, Guidon lutou pela educação, preservação ambiental, cidadania e turismo sustentável no interior do país. A criação da FUMDHAM foi um marco: um centro de pesquisa, museu e referência em arqueologia, que também levou desenvolvimento para comunidades historicamente esquecidas pelo Estado.
Reconhecimento e luto
A morte de Niède Guidon gerou comoção em todo o país. O Governo do Estado do Piauí decretou luto oficial de três dias. A Universidade Federal do Piauí (UFPI) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) publicaram notas de pesar, ressaltando sua importância para a ciência e a cultura brasileira.
Ela será velada em cerimônia restrita, conforme seu desejo. Não há ainda informações sobre homenagens públicas ou memoriais permanentes, mas lideranças acadêmicas e políticas já falam em rebatizar espaços e programas em sua honra.
Um legado eterno
Niède Guidon nos deixou, mas sua obra permanece. Não apenas nas cavernas da Serra da Capivara, mas em cada estudante que hoje se inspira em sua coragem. Em cada mulher que ousa trilhar a ciência em um país desigual. Em cada parede de pedra onde pulsa uma história ainda viva.
O Portal Sem Fronteiras se despede desta gigante com reverência. A mulher que decifrou o ado nos ensinou também a cuidar do futuro. Que seu nome, como as pinturas que tanto protegeu, jamais se apague.
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